Armando Liguori Junior apresenta um exemplo da obra poética de Cristina Peri Rossi, escritora uruguaia radicada em Barcelona e Prémio Cervantes em 2021, da qual aqui já se apresentou um excerto do livro "Julio Cortázar y Cris".
No original, o poema que Armando Liguori Junior hoje aqui apresenta de Cristina Peri Rossi é este:
XIV
Ninguna palabra nunca ningún discurso -ni Freud, ni Martí- sirvió para detener la mano la máquina del torturador. Pero cuando una palabra escrita en el margen en la página en la pared sirve para aliviar el dolor de un torturado, la literatura tiene sentido.
Sabe bem do que fala a escritora, pois a tortura foi prática corrente da ditadura uruguaia, à qual teve de escapar para sobreviver no começo da década de 70. O poema aqui apresentado integra o livro "Condición de Mujer", onde reúne uma série de exemplos da sua poesia.
Mas o trabalho literário de Peri Rossi já por aqui passou. Que motivações levaram a uruguaia (que também tem nacionalidade espanhola) a escrever "Julio Cortázar y Cris"? A própria autora o explicou, numa entrevista ao jornal El Norte de Castilla: "Não tive qualquer intenção autobiográfica - fi-lo como parte da biografia que um dia alguém vai escrever sobre ele", explicou. Mas mais: "E completamente indignada com os rumores que corriam acerca da sua alegada homosexualidade, pois o mais provável é que tenha sido vítima de SIDA. Não devido a contacto sexuais, mas por causa de uma transfusão de sangue", referiu. E lembrou, sobre a obra publicada em 2014: "Quando escrevi o livro havia mais de 10 anos que morrera e penso que foi a primeira vez que assumi que a Cris dos 15 poemas de amor a Cris do seu livro "Salvo el crepúsculo" era eu. Mas nunca aceitei publicar as suas cartas."
Isto é antecipar muito a história, sobretudo a da relação entre a uruguaia - que, integrando o chamado boom literário da América Latina dos anos 60, ao lado de nomes como Vargas Llosa, García Márquez, Carlos Fuentes ou Juan Rulfo, escreveu quase quatro dezenas de obras, sobretudo novelas, poesia e ensaios - e o argentino. Peri Rossi nasceu em Montevideu, a 12 de novembro de 1941. Com a ditadura, teve de procurar o exílio em 1972, fugindo para Espanha e acabando por radicar-se em Barcelona, cidade onde ainda vive. Aqui escreveu a maior parte da sua obra, trabalhando também enquanto tradutora de autores como Clarice Lispector e ainda como jornalista.
Já em Espanha, a colaboração entre as ditaduras uruguaia e espanhola obrigou-a a nova fuga no ano de 1973, então para Paris, onde viria a conhecer e travar uma amizade muito especial com Cortázar. Este já lhe dirigira uma carta a confessar admiração depois de ler "El Libro de mis Primos", publicado em 1969: "El libro me buscó a mí, Cristina: fíjate vos que yo estaba escribiendo entonces una novela que se iba a llamar El libro de Manuel y voy y me topo con el tuyo, y esa noche, cuando me lo puse a leer —porque lo empecé a leer de noche, entre el humo de la pipa y un disco de Ray Charles que sonaba como los dioses— me di cuenta de que mi libro era uno de tus primos [...] me parecía fascinante que vos en Montevideo y yo en París tuviéramos la misma idea, mezclar los géneros, prosa y poesía en una novela", escreveu-lhe o autor de "Rayuela", conforme revela o diário argentino Clarín.
E, já depois de Peri Rossi voltar a Espanha, Cortázar não esconde a ternura que lhe dedica: "Pero, además, Cristina, ayer hubo tu pequeña mano siempre un poco fría, un poco gorrión en la llovizna, que se posó en mi pelo y me acarició brevemente, deliciosamente [...] algo me dice que vos y yo venimos ya de una especie de relación anterior, avatares de otra remota amistad. Déjame ser el unicornio que bebe de la mano de la doncella en los tapices medievales; a su manera él es feliz, está colmado."
A profunda amizade que os uniu foi bem expressa pelos dois até à morte do escritor argentino e no livro de Peri Rossi de que hoje aqui é apresentado um excerto por Agostinho Costa Sousa. A uruguaia escreve, recordando a convivência de ambos, citada ainda pelo Clarín: "No he vuelto a París, como tú no has podido volver a Barcelona. Pero te cuento que nuestro restaurante favorito (el Amaya) sigue en las Ramblas, la Fundación Miró continúa con su olivo central y estoy segura, completamente segura, de que te fascinarían La vie de Adèle (me dirías: 'por qué no escribiste vos el guión?') y La venus de las pieles, de Polanski."
Mais à frente, ainda lembrando um conjunto de paixões partilhadas, relembra, segundo o jornal argentino: "Estuvieras donde estuvieras (porque viajabas muy a menudo: huías de París, a veces, a lugares remotos, no solo a Cuba o a Nicaragua), siempre encontrabas algún libro sobre dinosaurios para enviarme, o una postal del Monstruo del lago Ness, o una maqueta."
Foram sempre muito próximos, íntimos, confidentes. E Cortázar dedicou-lhe poesia, remetendo-lhe "Cinco Poemas para Cris", "Otros Cinco Poemas para Cris" e "Cinco últimos poemas para Cris" em 1977. A escritora sentiu-se baralhada. "Confieso que su lectura, en un principio, me apabulló. Yo, la poeta, me veía ahora tratada como musa, como objeto, y el cambio de papeles trastornaba un poco mi identidad. Pero la identidad no es más que el nombre que damos a nuestros hábitos y costumbres", admitiu.
Contaria na obra "La Insumisa" (2020), onde aborda os primeiros anos da sua vida e o tempo da adolescência, o episódio de violação que sofreu. Em novembro de 2021, numa entrevista ao espanhol Público, citada no seu site, confessa ser "submissa às leis, mas não às convenções sociais, à injustiça, à desigualdade e às diferenças de classe, de cor ou de atividade sexual". Nunca escondeu a sua preferência sexual por mulheres e, na obra poética, dedicou-lhes muitos dos seus versos. Manteve também a coerência no seu posicionamento político à esquerda e na defesa dos direitos humanos.
Para lá do trabalho poético e dos ensaios, a lista das suas novelas inclui "El Libro de mis Primos" (1969), "La Nave de los Locos" (1984), "Solitario de Amor" (1988), "La Última Noche de Dostoievski" (1992), "El Amor es una Droga Dura" (1999), "Todo lo que no te Pude Decir" (2017) e o já referido "La Insumisa" (2020).
É possível saber mais sobre a vida e o trabalho de Cristina Peri Rossi, agraciado ao longo dos anos com quase duas dezenas de prémios, no seu site oficial aqui.
Arquitrave
"Para mim, a imaginação é o reino da liberdade e deixo que flua de forma espontânea", admitiu ao jornal espanhol Público, em novembro de 2021, depois de ser distinguida com o Prémio Cervantes. Na mesma entrevista em que reconhece ser "uma franco-atiradora, uma trapezista que realiza os seus saltos em rede por baixo".
Armando Liguori Junior, ator e jornalista de formação, tem vários livros publicados; três de poemas ("A Poesia Está em Tudo" – Editora Patuá 2020; "Territórios" – Editora Scortecci 2009; o recente "Ser Leve Leva Tempo", que já aqui apresentou a 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa; e um de dramaturgia: "Textos Curtos para Teatro e Cinema (2017) – Giostri Editora). Atualmente mantém um canal no YouTube (Armando Liguori), dedicado a leituras literárias, especialmente de poesia. Estreou-se nas leituras aqui para o blog com "Se te Queres Matar Porque Não te Queres Matar?", de Álvaro de Campos, a 15 de julho de 2020, seguindo-se "Continuidades", de Walt Whitman, a 7 de agosto e "Matteo Perdeu o Emprego", de Gonçalo M. Tavares, a 11 de setembro, várias leituras do meu "Murro no Estômago" (a 16 de outubro de 2020 e a 5 de setembro de 2021).
Em 2021, a 12 de fevereiro, apresentou "Pelo Retrovisor", de Mário Baggio, seguindo-se "A Gaivota", de Anton Tchekhov, a 27 de março, Dia Mundial do Teatro; "A Máquina de Fazer Espanhóis", de Valter Hugo Mãe, a 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa; e, a 10 de junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, com leituras de "Cheira Bem, Cheira a Lisboa", de César de Oliveira, e um trecho de "Viagem", de Miguel Torga. A 26 de outubro surgiu "O Medo", de Carlos Drummond de Andrade, e Niels Hav com "Em Defesa dos Poetas" foi o passo seguinte, a 28. Antes de hoje, Armando Liguori Junior apresentara "Algo Está em Movimento", de Affonso Romano de Sant'Anna, a 30 de outubro do ano passado. A 2 de março leu "O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá", de Jorge Amado, e no dia 6 apresentou "A Máquina", de Adriana Falcão.
"As Coisas", de Arnaldo Antunes, foi a proposta de 13 de março. A 5 de maio, Dia Mundial da Língua Portuguesa, leu "Ser Leve Leva Tempo". A 13, Armando Liguori Junior deixou outro exemplo de talento ao ler "Pássaro Triste", do seu livro "Toda Saída É de Emergência". No dia 19, Cecília Meireles e o poema "Escolha o seu Sonho" foram as propostas. Seguiu-se um excerto de "Macunaíma", de Mário de Andrade, a 27 de maio. De 3 de junho é a proposta de leitura de "Sapatos", de Rubem Fonseca. A 4 de novembro leu "Samadhi", de Leila Guenther. De dia 24 é "Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya", de Jorge de Sena. "O Gato e o Pássaro", de Jacques Prévert", foi a leitura de 29 de novembro.
A apresentação do livro "Ser Leve Leva Tempo" pode ser recordada aqui.
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