Aqui se relembra o momento em que a escritora Alice Vieira participou com a leitura de um poema de Ruy Belo - nome grande da poesia em Portugal na segunda metade do século XX -, a quem conheceu bem desde os tempos em que se cruzaram na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
"Na obra de Ruy Belo está muito explicada Santarém e este mundo da sua infância, da sua juventude", resume o ator Mário Viegas em imagens de arquivo - do seu programa "Palavras Vivas", à porta do teatro Taborda, em janeiro de 1991 - no documentário da RTP intitulado "Ruy Belo, Era Uma Vez", realizado por Nuno Costa Santos em 2015. Nascido em São João da Ribeira (27 de fevereiro de 1933), uma pequena aldeia do concelho de Rio Maior, Ruy Belo era filho de um casal de professores do ensino primário e iria licenciar-se em Direito, estudando nas Universidades de Coimbra e de Lisboa. Foi editor literário da Editorial Aster e chefiou a redação da revista Rumo. Licenciou-se na capital em 1956, aí transmitindo uma aura de respeito à sua volta. Ia doutorar-se em Roma (Direito Canónico) e, mais tarde, nos anos 60, quando já publicara "Aquele Grande Rio Eufrates", ingressou na Faculdade de Letras da Universidade lisboeta para nova licenciatura, então em Filologia Românica. Pelo meio publica "Boca Bilingue" (1966). Muitos se interrogavam o que fazia ali alguém com o seu nível de conhecimentos, como recorda no referido documentário a própria escritora Alice Vieira que o conheceu nessa altura. Leonor Xavier, jornalista e escritora, segue um caminho semelhante: "Ele intimidava-me um pouco, era alguém que sabia mais do que nós todos juntos", aponta. Com formação católica e ligado à Opus Dei, afastou-se da organização porque esta o "proibia de escrever" e, ainda estudante na Faculdade de Letras, jogou futebol como defesa-central, publicou artigos e foi entrevistado em A Bola.
Contactou de perto com o linguista Lindley Cintra, pai do ator Luís Miguel Cintra, com quem manteve forte amizade. Tradutor rigoroso e com grande atividade editorial, ganhara em 1961 uma bolsa na Fundação Gulbenkian que será fundamental para o seu sustento. Conhecera Maria Teresa na Faculdade de Letras e casam-se em Vila do Conde (1966), mas é o próprio Lindley Cintra quem tem de ir buscá-lo a casa, uma vez que se distraíra com as horas e ficara em contemplação à varanda. Colabora na revista O Tempo e o Modo, as crises estudantis fazem com que assuma posições de cariz político, integra o grupo dos católicos progressistas com João Bénard da Costa, Pedro Tamen ou Sophia de Mello Breyner Andresen, coloca o nome em manifestos e abaixo-assinados contra a ditadura, vindo a ser candidato a deputado pela Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), em 1969, ao lado de Mário Soares, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares ou Gonçalo Ribeiro Telles. Face a semelhante exposição, desperta a atenção da PIDE que passa a exercer vigilância sobre os seus passos. Vive rodeado de livros, com a mulher e os três filhos (dois rapazes, Diogo e Duarte, e uma rapariga, Catarina) numa casa no Monte Abraão (Queluz), lê muito, escreve a toda a hora e em todas as superfícies, até no verso de um bilhete de metro, a busca pela perfeição das sonoridades e dos ritmos das palavras é incessante, publica "Homem de Palavra(s)" e "Na Senda da Poesia".
Nadador experiente, é salvo de morrer afogado na Senhora da Guia, mas passa cinco horas em coma - sobre o assunto escreve "Fala de um Homem Afogado ao Largo da Senhora da Guia no Dia 31 de Agosto de 1971". Leitor de Português em Madrid, regressa a Portugal e, sem ter oportunidade de ser docente universitário, algo que lhe causa profunda tristeza, torna-se professor do ensino secundário à noite. Continua a escrever e a publicar: "Transporte no Tempo", "País Possível", "A Margem da Alegria", "Os Estivadores" e "Toda a Terra". Em 1977 publica "Despeço-me da Terra da Alegria". Um dia, vê num jornal o anúncio a um concurso para professor assistente de Literatura na Faculdade de Letras. Desloca-se a Lisboa para concorrer, mas a vida já não lhe dá tempo. Insuficiente coronário como o pai, acaba por ser vítima de edema pulmonar, morre bruscamente a 8 de agosto de 1978. Maria Teresa, a quem homenageia no poema "Elogio de Maria Teresa", torna-se curadora da sua obra até ao momento em que deixa de existir, a 17 de fevereiro de 2018.
"Obra Poética" em dois volumes (Editorial Presença)
"A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar - e de se ficar - pelas palavras", escreve no poema "Não Sei Nada".
Nascida em Lisboa, a 20 de março de 1943, Alice de Jesus Vieira Vassalo da Fonseca passou muitas férias de verão nas termas de Caldelas e, antes de entrar na Faculdade de Letras, estudou no Liceu D. Filipa de Lencastre. Seria jornalista e mulher de Mário Castrim, crítico de televisão, escrevendo aos 14 anos um texto a tentar que ele o publicasse, mas a resposta foi negativa, embora lhe indicasse o caminho de continuar a tentar. Alice insistiu, trocaram muitas cartas e acabaram por conhecer-se quando a licenciada em Filologia Germânica começou a trabalhar no Diário de Lisboa. Porém, quando a ligação entre os dois ganhou dimensão, Alice atravessou a rua e foi trabalhar para o Diário Popular, conforme contou ao Público em 2012. "As pessoas, quando têm um relacionamento, não devem trabalhar no mesmo sítio. Seja marido e mulher, pai e filho", disse. Em 1966, conforme lembrou em entrevista ao Diário de Notícias publicada a 3 de agosto de 2018, foi para Paris, onde se encontrava Maria Lamas, sua prima e que era também escritora, tradutora, jornalista e militante pela causa feminista, além de grande lutadora contra a ditadura. Na referida entrevista ao Diário de Notícias contou como foi a experiência de viver o Maio de 68 na capital francesa e o tempo que ali passou. "Foi a liberdade completa", lembrou. "Foram anos que me enriqueceram muito: aquilo que se ouve, que se vê, as conversas que se têm", sintetizou. Nesse âmbito, não deixou de lembrar o convívio com personalidades como Pablo Neruda, Jorge Amado e a sua mulher, Zélia Gattai, ou Manuel Alegre.
Na conversa com Rita Pimenta para o diário Público em 2012 reconheceu ainda que fora desaconselhada a ligar-se a Castrim, sobretudo devido à diferença de 23 anos entre eles. Contudo, a vida encarregou-se de mostrar que tivera razão em ignorar os receios de outros. "Quando tive o 'cancro da praxe', ele é que foi o meu enfermeiro", contou. E transmitiu-lhe a força necessária para que pudesse ultrapassar as diversas fases da doença, em especial a da quimioterapia. Além disso, incentivou-a sempre a escrever, admitindo a autora com mais de três décadas a construir uma importante obra para público mais jovem - mas também de poesia, romance e crónicas - que sente "algum remorso por ele se ter afastado da escrita" para que ela se dedicasse aos livros.
Alice e Mário são pais da escritora Catarina Fonseca e do professor universitário André Fonseca e ganharam netos que ele não chegou a conhecer. Para Alice, o jornalismo continuou, depois do Diário Popular no Record e no Diário de Notícias, mas também no Jornal de Notícias e em revistas. Quanto à escrita de livros, essa ganhou decisivo impulso graças ao primeiro prémio que recebeu, em 1979, relativo a literatura infantil, vindo da Fundação Gulbenkian e entregue em função da obra "Rosa, Minha Irmã Rosa". Ambos cultivaram o contacto com as crianças como um privilégio, algo que Alice tem continuado a fazer com a ternura de sempre. Também escreve poesia e tem participação em coletâneas de crónicas ou parcerias em obras de ficção. A sua vasta obra está traduzida para dezenas de línguas e também já foi premiada além-fronteiras. E, sempre interessada em novos projetos, na fase de pandemia Alice Vieira esteve com Manuela Niza em Retratos Contados com as crónicas "Pó de Arroz e Janelinha" que chegaram à Antena 1 e também podiam ser seguidas via Facebook. Um projeto cujo mentor foi, em 2015, precisamente Nélson Mateus, coautor do livro que já aqui se apresentou: "Diário de uma Avó e de um Neto Confinados em Casa", diálogo por entre momentos inesquecíveis, com uma proposta diferente que, em tempos estranhos e adversos de pandemia, juntou Alice Vieira e Nélson Mateus. E um segundo volume está já em preparação... Nélson nasceu em 1972 na cidade de Lisboa e tem procurado desenvolver projetos e iniciativas que valorizem os mais velhos como, por exemplo, o 1.º Encontro Avós e Netos; a celebração dos 60 anos de carreira de Simone de Oliveira ou exposições que passam em revista o trabalho e a vida de nomes tão fundamentais como Ruy de Carvalho ou Alice Vieira.
Aqui no blog, Alice Vieira participou com várias leituras: primeiro, a 1 de maio de 2020, homenageando Mário Castrim ao ler um excerto de "Viagens em Casa"; mais tarde, a 15 desse mesmo mês, com "O Valor do Vento", poema de Ruy Belo que hoje aqui regressa; a estreia de "Murmúrios do Vento", de José Tolentino de Mendonça, aconteceu em abril de 2021 e voltou a 27 de setembro deste ano.
Mas esta não foi a estreia de um livro da escritora aqui: a 26 de dezembro de 2020, li um trecho da obra "Trisavó de Pistola à Cinta e Outras Histórias". Três dias mais tarde, a 29 desse mesmo mês, foi a vez de um excerto do livro "Se Perguntarem por Mim Digam que Voei". A 26 de fevereiro do ano seguinte apresentei um pouco da obra "Viagem à Roda do Meu Nome". E, a 20 de março, por ocasião do aniversário da jornalista e escritora, o Fernando Soares leu o poema "São Um Perigo as Palavras", parte do livro "O Que Dói às Aves". Desde aí, têm sido diversas as presenças de leituras de obras assinadas por Alice Vieira.
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