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  • Paulo Jorge Pereira

"A Última Escala do Tramp Steamer", de Álvaro Mutis


Jornalista, locutor de rádio, voz de dobragens para cinema, poeta, ensaísta e romancista: de tudo isto há um pouco no multipremiado trabalho do colombiano Álvaro Mutis, de que aqui se apresenta um trecho do livro "A Última Escala do Tramp Steamer".



Nascido em Bogotá a 25 de agosto de 1923, a carreira diplomática do pai, Santiago Mutis Dávila, levou-o a viajar para Bruxelas ainda criança. Entre os dois e os nove anos a família viveu na Bélgica, mas, de súbito, a tragédia atingiu-os em cheio quando, com apenas 33 anos, o pai morreu. Perante o sucedido, a mãe decidiu que regressavam à Colômbia, até porque acabara de herdar a fazenda onde Álvaro e o irmão, Leopoldo, costumavam brincar sempre que trocavam a Europa pelo território colombiano para passar férias. Era um espaço mágico, enorme, onde o avô plantara café e chegara até a pesquisar ouro, embora sem resultados. Desses tempos em que cruzavam o Atlântico durante quase três semanas ficou o fascínio por barcos, algo que teve ecos na sua obra, conforme pode perceber-se pelo exemplo do livro que aqui se apresenta, "A Última Escala do Tramp Steamer".

Aos poucos ganhou também a paixão pela escrita e pela poesia em particular, muito influenciado por Eduardo Carranza, poeta que foi seu professor. Iria tornar-se uma espécie de homem dos sete ofícios, casando-se aos 18 anos com Mireia de quem iria separar-se. Trabalhou para a Radiodifusora Nacional de Colômbia como locutor (iria também encarregar-se de dobragens no cinema para a Columbia Pictures) e acabou por chegar ao jornalismo, algo que lhe permitiu ter acesso a espaços privilegiados para publicar. O começo da sua vida literária aconteceu nas páginas da revista Vida, pertença da Compañia Colombiana de Seguros e na qual trabalhou como chefe de redação que escrevia perfis de autores como Conrad, Pushkin, Murat ou Saint-Exupéry ou, por vezes, apresentava o seu trabalho – foi assim que ali publicou o seu primeiro poema: "La Creciente". E La Razón publicou outra das suas sugestões iniciais, em 1948: "El Miedo". Conhece os refugiados de guerra Casimiro Eiger e Ernesto Volkening, cujo interesse pelo seu trabalho literário abre caminho à publicação de uma obra em parceria com Carlos Patiño Roselli, "La Balanza". Envolve-se em tertúlias literárias nos cafés e cruza-se com duas gerações de poetas: os Nuevos e os de Pedra e Cielo. Volkening será o primeiro leitor do seu segundo livro, "Los Elementos del Desastre" (1953). Dois anos mais tarde nasce "Reseñas de los Hospitales del Ultramar".

Entretanto, torna-se relações públicas numa empresa petrolífera e, na segunda metade dos anos 50, perseguido por alegada fraude cometida na companhia - usava dinheiro para colocar a salvo da ditadura vários dos seus amigos -, deixa o país e ruma ao México. Aqui ainda estará preso durante 15 meses. Mas vai publicando e suscitando interesse, destacando-se a primeira vez que ganha evidência além-fronteiras quando Octavio Paz escreveu sobre o seu trabalho. Irá casar-se com uma catalã, "o melhor que alguém pode fazer se quer viver tranquilo e seguro para o resto da vida", e terão três filhos.

Conquista espaço mediático num contexto em que esta expressão nem sequer existia, publicando no suplemento dominical de "El Espectador" e, além de compatriota, irá ser amigo de Gabriel García Márquez (a quem causará impressão quando conta que queimara dois romances, um deles sobre os últimos anos de Bolívar. "Não queria acreditar", lembrou, em entrevista ao diário espanhol El Mundo. "Essa chamava-se 'O Último Rosto' e tinha 360 páginas; a outra tinha por título "Cuando Dios Bajó a Nagaima" e era sobre a violência na Colômbia. Por que razão as queimei? Porque não as sentia minhas, não era algo de sincero", sintetizou. Mas, afinal, tudo acabou por correr bem: "Quando convenci García Márquez de que queimara mesmo o meu romance, ele piscou-me um olho e respondeu: 'Pois agora quem vai escrever esse livro sou eu!' E não é que resultou num maravilhoso livro?").

Já estava separado da primeira mulher e, no México, publica pouco nos anos 60 ("Diario de Lecumberri" e "Los Trabajos Perdidos" são exceções) e 70 ("Summa de Maqroll el Gaviero" e "La Mansión de Araucaíma"), mas, em compensação, os anos 80 e 90 vão encontrá-lo com elevadíssima taxa de produtividade. "Caravansary", "La Verdadera Historia del Flautista de Hammelin", "Los Emissarios", "Cronica Regia y Alabanza del Reino", "Un Homenaje y Siete Nocturnos", "La Nieve del Almirante", "Un Bel Morir" e "Llona llega con la lluvia" antecedem a publicação de "A Última Escala do Tramp Steamer", em 1989.

Muito crítico do progresso, na entrevista concedida ao jornal catalão o escritor foi claro: "Sou reacionário, sim. Porque não me vejo como progressista no sentido que lhe atribuem hoje, detesto a ideia do progresso material cuja origem é o racionalismo, parece-me uma idiotice absoluta", confessou. "O progresso deveria ir além da invenção da penicilina ou do automóvel. O único progresso que me interessa é o interno, o dos sentimentos, aprender a partilhar com o homem sabendo que este é um animal perigosíssimo", defendeu. Em simultâneo, não perdeu a oportunidade e apresentou contundentes críticas aos meios eletrónicos de comunicação, classificou mesmo a então recém-nascida Internet como "um invento do diabo", admitiu a sua desconfiança até do telefone e afirmou-se "partidário do regresso ao diálogo cara a cara, pois neste caso é muito mais difícil a possibilidade do engano". Lembrou, por outro lado, a necessidade de se ser muito cuidadoso com a palavra escrita porque "é uma armadilha e terrível". E distanciou-se o mais possível da globalização ao mesmo tempo que encontrava três adjetivos para os tempos que ainda se vivem: "Sinistros, aterradores e sórdidos".

Entre outros exemplos, da sua obra multipremiada sobressaem sete livros publicados durante os anos 90: "La Muerte del Estratega", "Amirbar", "Abdul Bashur, Soñador de Navios", "Tríptico de Mar y Tierra", "Empresas y Tribulaciones de Maqroll, el Gaviero", "Contextos para Maqroll" e "De Lecturas y algo del Mundo". O ritmo ganha uma tendência menos produtiva na parte final da sua vida: "Camiños y Encuentros de Maqroll el Gaviero", "Poesia. Antología Personal" "La Voz de Álvaro Mutis" e "Estación México" são as derradeiras escalas de um longo percurso.

Uma das preocupações que manifesta sempre é o afastamento que assegura do chamado realismo mágico. "Não é que tenha alguma coisa contra o género", explicou durante a já referida entrevista. "Quando é feito por alguém como Gabriel García Márquez ou Miguel Ángel Astúrias, os livros são belíssimos, mas eu não sei fazê-lo e acaba por ser estranho e distante de mim", reconheceu. "


Edições ASA/Tradução de J. Teixeira de Aguilar


Poeta ou romancista? “Poeta, sim, e narrador. Romancista não. Isso foram Galdós, Dickens ou Tolstói”, disse em entrevista ao diário El Mundo nos anos 90.

"Os livros dão-me algum dinheiro que chega precisamente quando mais necessito dele. Mas não são somas avultadas, nem se trata de dinheiro do qual possa dizer que me permite viver", explicou. Tinha 73 anos quando concedeu esta entrevista, morreria cerca de duas décadas mais tarde, já com 90, a 22 de setembro de 2013. Na Cidade do México, onde acabara por fixar residência (tal como García Márquez) a partir de 1956.

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