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Paulo Jorge Pereira

"Afrodite", de Isabel Allende

Familiar de Salvador Allende, Presidente chileno assassinado a 11 de setembro de 1973 pelo golpe que abriu caminho à ditadura de Pinochet, estreou-se na escrita em 1982 com "A Casa dos Espíritos". O romance seria adaptado ao cinema com realização de Bille August, Jeremy Irons e Meryl Streep nos principais papéis. Mas hoje é de um trecho do livro "Afrodite" que aqui se trata.



Prolífica autora, Isabel Allende não conhece limites de género para a sua escrita. Ao longo dos anos escreveu mais de duas dezenas de romances, mas também peças de teatro, memórias e contos. Nascida a 2 de agosto de 1942, em Lima, no Peru, Isabel Allende Llona tem nacionalidade chilena e norte-americana. Filha do diplomata Tomás Allende, primo-irmão de Salvador Allende, e de Francisca Llona Barros, nasceu numa altura em que o pai trabalhava na embaixada do Chile na capital peruana, mas três anos mais tarde Tomás Allende desapareceu e a mãe mudou-se com ela para Santiago do Chile. Quando a mãe se casou em 1953 com outro diplomata, Ramón Huidobro, a família tornou a envolver-se em viagens constantes, incluindo Líbano e Bolívia até 1958. Nesse período, Isabel estudou em colégios particulares norte-americanos e ingleses, acabando por não frequentar a universidade no regresso ao Chile. Ao invés disso, a sua estreia laboral foi precoce, logo em 1959, e desenvolveu atividade nas Nações Unidas, trabalhando para a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês). Nesta missão teve oportunidade de conhecer diferentes países, chegando a trabalhar em Bruxelas, na Bélgica, mas também noutras cidades europeias.

Pouco depois, conheceu Miguel Frías, então jovem estudante de Engenharia, e casaram-se em 1962. Em 1963 nasceu Paula e, três anos mais tarde, Nicolás. O domínio perfeito do inglês permitiu-lhe fazer tradução de romances e começar aí a sua paixão pela escrita. Em 1967 passou a ter atividade como jornalista, primeiro na revista Paula, onde nunca teve receio de escrever sobre temas que poucos se atreviam a abordar na conservadora sociedade chilena (adultério, aborto, sexualidade feminina, prostituição, toxicodependência), mais tarde na Mempato, uma revista infantil. Entre 1970 e 1974 foi produtora televisiva e, quando conseguiu entrevistar o poeta Pablo Neruda, este aconselhou-a a trocar o jornalismo pela escrita de ficção, considerando que tinha uma imaginação muito rica. De 1973 é a estreia de uma peça sua, "El Embajador", que esteve em cena durante algum tempo na capital chilena. Mas o golpe de Estado de 11 de setembro desse ano, que conduziu Pinochet ao poder como ditador depois de assassinar o Presidente Salvador Allende, alterou para sempre a sua vida. Perante as atrocidades que eram cometidas, com a sua vida e as dos pais em risco - Isabel ajudou a colocar a salvo dezenas de pessoas perseguidas pelo regime de Pinochet -, o exílio foi o único remédio. Fugiu para a Venezuela, aqui vivendo durante 13 anos e trabalhando naquele que seria o seu primeiro livro (que começara por ser uma carta dirigida ao avô, quando soube que estava a morrer e, pela sua condição de exilada, não poderia ir vê-lo), logo com enorme sucesso, publicado em 1982 e mais tarde, em 1993, adaptado ao cinema com realização de Bille August, filmado em parte nas regiões de Lisboa e do Alentejo, e com um elenco composto por Meryl Streep, Glenn Close, Jeremy Irons, Winona Ryder e Antonio Banderas: "A Casa dos Espíritos".

Ao mesmo tempo que ia trabalhando enquanto responsável pela administração de uma escola, Isabel Allende escrevia - por disciplina, definiu que, tal como sucedera com o primeiro, começaria sempre a 8 de janeiro a escrita dos outros livros. Por outro lado, a sua vida pessoal começava a deteriorar-se: separou-se do marido em 1978 e o divórcio chegaria em 1987. Pelo meio, publicou "A Lagoa Azul" (1983), "De Amor e de Sombra" (1984) e "Eva Luna" (1987). Aproveitava a escrita para construir personagens femininas fortes e emancipadas que não se deixavam dominar pelo poder de sociedades patriarcais. Entretanto, voltou a apaixonar-se, desta vez pelo norte-americano Willie Gordon, mudando-se para a Califórnia em 1988. Nunca deixou de escrever, em 1989 apresentou "Contos de Eva Luna" e, em 1991, publicou "O Plano Infinito".

Porém, a sua vida voltou a ter marcas trágicas quando, em dezembro desse mesmo ano, a filha, que nascera a 22 de outubro de 1963, foi hospitalizada em Espanha e entrou em coma irreversível, depois de ficar doente com porfíria. No meio do desespero e do sofrimento intensos, Isabel Allende iria, ao longo do tempo, encontrar forças para escrever "Paula", uma homenagem à filha que comporta um regresso ao passado, escrito sob a forma de um relato do que fora a vida da própria Paula e do Chile, na esperança de que, caso recuperasse mas ficasse sem memória, a obra pudesse ajudá-la a lembrar. Mas Paula morreu a 6 de dezembro de 1992. Mais tarde, Isabel iria confessar que escrever aquele livro fora fundamental para lidar com o primeiro ano de luto após a morte da filha. Como tributo à filha e para ajudar mulheres e crianças em dificuldade, a escritora criou, em 1996, a Fundação Isabel Allende, dedicando-se a salvar milhares de pessoas desfavorecidas em todo o mundo.

"Paula" foi publicado em 1995 e, dilacerada pela dor que a perda da filha representara, Isabel iria necessitar de três anos para voltar a publicar: o livro seguinte foi "Afrodite" (1998). A partir de então, manteve quase sempre a regularidade de uma nova obra por ano - "Filha da Fortuna" (1999), de que aqui já se apresentou um trecho, "Retrato em Sépia" (2000), "A Cidade dos Deuses Selvagens" (2002), "O Meu País Inventado" e "O Reino do Dragão de Ouro" (2003), "O Bosque dos Pigmeus" (2004), "Zorro, Começa a Lenda" (2005), já lido aqui no blog, "Inês da Minha Alma" (2006), "A Soma dos Dias" (2007), "A Ilha sob o Mar" (2009), "O Caderno de Maya" (2011), "O Jogo de Ripper" (2014). A decadência do segundo casamento levou-a a novo divórcio em 2015, aos 72 anos. "Pensei que iria viver o resto da minha vida sozinha", admitiu. Mas voltaria a apaixonar-se e, no livro que publicou ainda nesse ano, "O Amante Japonês", o tema principal é mesmo a questão do amor numa fase muito adiantada da vida e também as razões que levam ao fim do amor.

Foi acumulando prémios ao longo do percurso literário, mas, entre as variadas distinções já recebidas, um orgulho muito especial preencheu-a quando recebeu das mãos de Barack Obama, em 2016, a Medalha Presidencial da Liberdade. Nos últimos anos tem continuado a alimentar a sua vontade de escrever - "Para Além do Inverno" é de 2017, mas, depois disso, já escreveu e publicou "Longa Pétala de Mar" (2019) e "As Mulheres da Minha Alma" (2020). E não se mostra disponível para parar.

O trabalho literário de Isabel Allende estreou-se aqui no blog quando li um excerto do livro "O Plano Infinito", a 3 de abril do ano passado, seguindo-se "O Amante Japonês", a 20 de janeiro deste ano, "Zorro", no passado dia 21 de fevereiro, "A Casa dos Espíritos", a 2 de março, e "Eva Luna", com um trecho lido a 18 de março. A 29 desse mês li um trecho de "Paula", o livro sob a forma de homenagem feita à filha pela escritora. No dia 7 de abril apresentei um excerto da obra "De Amor e de Sombra". "Filha da Fortuna" chegou a 20 de abril.


DIFEL/Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra

Ilustrações de Robert Shekter/Receitas de Panchita Llona


"Arrependo-me dos pratos deliciosos rejeitados por vaidade, tanto como lamento as ocasiões de fazer amor que deixei passar por estar ocupada em tarefas pendentes ou por virtude puritana", pois "a sexualidade é uma componente da boa saúde, inspira a criação e faz parte do caminho da alma... Infelizmente, demorei trinta anos a descobri-lo", escreve Isabel Allende.

Defensora dos direitos das mulheres e dos imigrantes, Allende foi, desde o primeiro momento, uma voz que se ergueu contra Trump.


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