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  • Paulo Jorge Pereira

"Budapeste", de Chico Buarque

Génio absoluto à escala universal com décadas de canções imortais que têm maravilhado milhões pelo mundo fora, Chico Buarque é um dos grandes mestres da língua portuguesa, dos ritmos e das linhas melódicas. Prémio Camões em 2019, deveria ter recebido o galardão em Lisboa no passado dia 25 de Abril, mas a pandemia obrigou ao adiamento da entrega. Aos 76 anos, é um dos melhores símbolos para qualquer celebração da língua portuguesa na escrita ou na música.



Antes da dimensão de Chico Buarque escritor de livros, falemos de como a sua música tem sido tão marcante e inesquecível - aliás, as duas dimensões já aqui foram abordadas no Especial dedicado ao Dia Mundial da Língua Portuguesa a 5 de maio. Quando a imprensa brasileira escreve que "o país seria outro se Chico Buarque não existisse" não está a exagerar - está apenas a encontrar uma comparação razoável para se perceber a dimensão monumental da obra do cantor e compositor que sempre levantou a voz para defender os oprimidos, combater a ditadura e qualquer tipo de autoritarismo. "Apesar de Você", escrita em 1970, num momento tenebroso da História do Brasil sob o governo de Emílio Médici (a ditadura militar, que haveria de inspirar outros regimes cruéis e sanguinários por toda a América Latina, começara a 1 de abril de 1964 e iria prolongar-se até 15 de março de 1985), teve circulação durante pouco tempo, chegou a ser um sucesso (100 mil cópias vendidas em pouco tempo) e a ter uma outra gravação na voz de Clara Nunes. Até que uma pequena notícia num jornal insinuou que o "Você" da canção era Médici, a polícia foi buscar todos os exemplares que estavam à venda, atacou a fábrica para que não restasse material e o censor que deixara passar a música foi punido. Chico chegou a ter de usar pseudónimos (Julinho de Adelaide ou Leonel de Paiva) para assinar o seu trabalho. Sem quaisquer restrições, a canção só seria publicada em disco no ano de 1978, num período de ligeiro abrandamento da pressão ditatorial. Cada frase da canção que pode ouvir-se aqui é uma crítica e um ponto de partida para a esperança renovada no sentido de que as torturas, os assassínios de inocentes, as violações dos direitos humanos e a prepotência da ditadura não vão durar sempre. No fundo, tem o cunho que Chico sempre imprimiu às suas letras, num hábil e inteligente jogo de enganos em que tão depressa parece estar a escrever sobre amor como acerca de política, tão depressa o domínio do indivíduo passa a coletivo e vice-versa: "Construção", uma das canções mais complexas e belas da língua portuguesa, é de 1971 e é outro exemplo perfeito da genialidade de Chico Buarque também àquele nível.

Era uma fase pujante na criatividade de alguém maior do que a vida, nascido a 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, filho do respeitado jornalista, historiador e professor Sérgio Buarque de Hollanda e da pintora e pianista Maria Amélia Cesário Alvim. Tinha apenas dois anos quando a família se mudou para São Paulo, pois o pai fora indigitado diretor do Museu do Ipiranga. Mas essa seria apenas uma de diversas mudanças - em 1953, o convite para que o pai fosse professor na Universidade de Roma levou Chico até Itália. No regresso ao Brasil, em 1960, Chico já afinara a veia musical em passos cada vez mais seguros. Três anos mais tarde, quando já escrevera também um primeiro conto, toma contacto com uma ação de índole mais política através de movimentos de estudantes na Universidade paulista, onde se matriculara no curso de Arquitetura e Urbanismo. Deixa o curso em 1965, pouco antes de mudar para sempre o panorama musical do Brasil e do mundo. Foi quando "A Banda" passou pela sua voz e pela de Nara Leão com vitória no Festival de Música Popular Brasileira (1966) que tudo se alterou - acabara de voltar da digressão europeia com a peça "Morte e Vida Severina" para a qual compusera a música. Veio o álbum de estreia, vieram sucessos em mais festivais, parcerias que começaram com Tom Jobim e, tendo duração variada, nunca mais pararam (Vinicius de Moraes, Toquinho, Manuel Bandeira, Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Francis Hime, Augusto Boal, Milton Nascimento, Roberto Menescal, Djavan, Edu Lobo, Sérgio Godinho, João Bosco, Ivan Lins e muitos, muitos outros). Mas a ditadura não dava tréguas, as suas canções de denúncia eram censuradas, recebeu ameaças e rumou ao exílio em 1969 para voltar logo no ano seguinte e reforçar a contestação aos assassinos que ocupavam o poder. Navegou por entre as ondas sonoras da Bossa Nova, da música popular brasileira (MPB) e do samba com mestria inigualável. Millôr Fernandes chamou-lhe mesmo "unanimidade nacional".

Pelo tempo fora compôs música para peças (como, por exemplo, "Morte e Vida Severina", ainda bem jovem), escreveu teatro ("A Ópera do Malandro", inspirada em "A Ópera dos Mendigos", de John Gay, e "A Ópera dos Três Vinténs", de Brecht e Kurt Weill, é a mais famosa), compôs a música principal para vários filmes ("Vai Trabalhar Vagabundo", por exemplo, mas também "Dona Flor e seus Dois Maridos" ou "Bye Bye Brasil"), noutros foi ator e diretor musical. Publicou dezenas de álbuns, transformou-se numa personalidade inigualável da lusofonia e da música à escala planetária. Tem cantado e composto temas que cruzam gerações, instalam-se na memória coletiva e tornam-se hinos trauteados pelo mundo inteiro. Ofereceu canções suas a outras vozes marcantes do Brasil (Nara Leão, Elis Regina, Maria Bethânia, Gal Costa, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, entre outros) e, sem deixar a música - são dos últimos anos as parcerias com os netos, por exemplo -, passou também a dedicar mais atenção à escrita.

E, neste caso, comecemos pelo que foi publicado há menos tempo, o mais recente, aquele que nos transmite toda a angústia que o povo brasileiro tem vivido sob o jugo do ocupante do Palácio do Planalto. Há um indisfarçável tom de amargura diluído sobre as páginas do mais recente livro de Chico Buarque, espelhando a surrealista realidade em que vive o Brasil sob a presidência de um homem que, em 2016, então como deputado federal, homenageou um torturador na sua declaração a favor do afastamento de Dilma do cargo. "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff (...), o meu voto é sim", defendeu, citado pela imprensa brasileira. Referia-se ao primeiro militar condenado por crimes cometidos durante a ditadura, responsável por torturas à própria Dilma, e que morreu em 2015 aos 83 anos, depois de negar sempre ter sido o assassino que foi. Passam por "Essa Gente" as clivagens políticas e tensões sociais, as manipulações, os desequilíbrios, a pobreza moral, miséria mesmo, de um país em que um ex-Presidente vai preso (Lula), outra é afastada do cargo (Dilma) e se chega à eleição de alguém cujas atitudes e palavras diárias são inqualificáveis.

Mas "Essa Gente" é apenas o último capítulo de uma história que, em termos de romances, soma para já seis capítulos, cujo início remonta a 1991 com "Estorvo". "É uma peregrinação alucinada em demanda das raízes perdidas, através de um percurso existencial povoado de assombro e de solidão", comentou o escritor José Cardoso Pires sobre o livro que conquistou o Prémio Jabuti para Romance do Ano. Em termos gerais, a obra foi elogiada pela crítica, embora existam sempre vozes dissonantes - a do jornalista Caio Túlio Costa foi uma delas, lançando suspeitas de plágio, seguindo-se o crítico Wilson Martins, neste caso também acusando Chico de falta de qualidade como escritor. As acusações de plágio foram desmentidas e o assunto morreu. Mas não o percurso literário do autor. E, em 2000, o livro ganhou dimensão cinematográfica com o filme de Ruy Guerra.

"Benjamim" é de 1995, mas dessa vez não se repetiu o fenómeno das acusações de plágio de quatro anos antes. No jornal Folha de São Paulo, José Geraldo Couto, jornalista, tradutor e crítico de cinema, escreveu: "Em momentos assim, o escritor Chico Buarque encontra o compositor Chico Buarque pela via do lirismo, e o resultado não é só alta literatura, mas também uma poesia dolorosa, uma quase-música que embala e comove." "Benjamim" foi adaptado ao grande ecrã com realização de Monique Gardenberg em 2004. Nesse mesmo ano, "Budapeste" gerou controvérsia por receber o Prémio Jabuti para Livro do Ano sem ganhar a distinção de Romance do Ano. "Talvez o mais belo dos três livros da maturidade de Chico, 'Budapeste' é um labirinto de espelhos que afinal se resolve, não na trama, mas nas palavras, como poemas", opinou Caetano Veloso. Walter Carvalho realizou a adaptação ao cinema em 2009.

Cinco anos decorrem sobre a apresentação de "Budapeste". Em 2009, novo livro de Chico, "Leite Derramado". Nova distinção com o Prémio Jabuti. Outra vez Livro do Ano. E outra controvérsia. Porquê? Sim, já adivinharam: porque uma vez mais não fora o Romance do Ano... Em entrevista ao diário Público de 18 de julho de 2009, o autor referiu: "Não quis escrever um romance situado em 1929, quis dar um relato atual com essas memórias, algo confusas, como são as memórias de um velho (...) Eu achei que o processo de recordação de um velho indicava um caminho literário", explicou.

De 2014 é "O Irmão Alemão", obra na qual Chico Buarque joga, entre a realidade e a ficção, com as memórias da família sobre um episódio da sua vida, pois aos 22 anos descobriu que tinha um irmão na Alemanha, Sérgio Günther, fruto da relação do pai com a alemã Anne Ernst. Então jornalista, Sérgio Buarque viveu em Berlim entre 1929 e 1930, trabalhando como correspondente para O Jornal. Mas só em 2013, por solicitação do próprio Chico e da editora Companhia das Letras, o historiador João Klug e o museólogo Dieter Lange descobriram mais sobre Sérgio Günther que ganhara evidência como jornalista e cantor na antiga República Democrática Alemã, morrendo em 1981.


Publicações Dom Quixote


Sobre "Budapeste", adaptado ao cinema por Walter Carvalho em 2009, Caetano Veloso comentou: "Talvez o mais belo dos três livros da maturidade de Chico, é um labirinto de espelhos que afinal se resolve, não na trama, mas nas palavras, como poemas."

O homem que marchou nas ruas contra a repressão na década de 60 é o mesmo que defende Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, contestando abertamente Jair Bolsonaro. Como vingança, este recusou-se a assinar o diploma de atribuição do Prémio Camões 2019 a Chico Buarque, mesmo que ela seja dispensável para a entrega do galardão. "A não assinatura do Prémio pelo Bolsonaro é um segundo Prémio Camões para mim", disse Chico. Já não era necessário, mas voltou a ficar demonstrada a diferença que faz a qualquer ser humano não ter ou ter coluna vertebral.

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