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  • Paulo Jorge Pereira

Alice Vieira lê "Murmúrios do Mar", de José Tolentino de Mendonça

Agora que o cardeal José Tolentino de Mendonça foi nomeado pelo Papa Francisco com estatuto de prefeito do novo Dicastério para a Cultura e a Educação, vale a pena lembrar a leitura que a escritora Alice Vieira aqui apresentou do poema "Murmúrios do Mar".



Tem de haver, e há, como todos sabemos, algo de grandioso em alguém que faz afirmações como esta: "A minha avó, que não sabia ler, nem escrever, foi a minha primeira biblioteca." Maria, como todas as mulheres da sua família, dizia-lhe romances medievais de cor. Tolentino de Mendonça disse-o a Anabela Mota Ribeiro, numa entrevista em 2012 que o diário Público divulgou. Hoje, a todos é fácil contemplar com reverência as funções que desempenha. Porém, antes de se tornar o guardião da Biblioteca Apostólica e do Arquivo Secreto do Vaticano, por escolha do Papa Francisco, que o tornou cardeal a 5 de outubro de 2019, José Tolentino Calaça de Mendonça tinha já um percurso muito respeitado em diferentes vertentes. E descobria a grandiosidade que pode existir em cada um de nós ao comover-se com o "Cântico dos Cânticos" que uma auxiliar da igreja, também analfabeta como a sua avó, lhe sabia dizer de forma inigualável, conforme contou nessa entrevista de boa memória.

Nascido no Machico, ilha da Madeira, a 15 de dezembro de 1965, o pequeno José foi o mais novo de cinco irmãos e iria distinguir-se pela vivacidade e inteligência com que sempre olhou o mundo ao seu redor. Angola, para onde viajou com apenas um ano, ao lado da mãe e dos irmãos, seguindo de barco para se juntarem ao progenitor no Lobito, será um dos primeiros cenários de que guarda recordações, pois ali viveu com a família - o pai era pescador - até aos nove anos, altura em que a independência o forçou a um regresso repentino a Portugal.Não esqueceu, contudo, a vastidão de espaços a perder de vista. "A infância é um vazio que nos interpela", dirá, muitos anos mais tarde, diante de Anabela Mota Ribeiro em entrevista. "Quando penso na infância, nem por uma vez me lembro de medo, de ansiedade", contou.

Depressa a religião se torna chamamento a que não resiste e aos 11 anos já está no seminário. Outra marca fundamental é Herberto Helder, com cuja obra toma contacto aos 16 anos. Na conversa com Anabela Mota Ribeiro, Tolentino de Mendonça admite que "foi uma grande descoberta. Foi como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que qualquer adjetivo".

De 1989 são a sua licenciatura em Teologia na Universidade Católica Portuguesa (UCP) e também a primeira visita a Roma. Quando, no ano seguinte, publica "Os Dias Contados", estreia literária e poética, é já padre na diocese do Funchal e prossegue os estudos com a sede de saber que o caracteriza. Torna-se mestre em Ciências Bíblicas, mais tarde doutor em Teologia Bíblica. Sai do Funchal rumo a Lisboa para ser capelão da UCP e, mais tarde, passar pela paróquia de Santa Isabel e com a condição de reitor na Capela de Nossa Senhora da Bonanza - ou, como a conhecem tantos, a Capela do Rato. Sendo ensinar também uma forma de aprendizagem, nos locais por onde passa assumirá ainda a condição de docente com diferentes graus de evidência: no Funchal, em Lisboa, Nova Iorque ou Vaticano, vai de convidado a assistente, auxiliar e associado. Tem frequentes intervenções nos media, é escolhido pela Conferência Episcopal Portuguesa para dialogar com o mundo cultural. Chega a vice-reitor da Universidade Católica e a diretor da Faculdade de Teologia. Bento XVI é o primeiro no Vaticano a reparar na sua inteligência, no modo simples que usa para interpretar o mais complexo e torna-o consultor do Conselho Pontifício na área cultural. Francisco prolonga o seu desempenho. É 2018 e o Papa Francisco torna a escolhê-lo - desta vez, quer que organize os Exercícios Espirituais no retiro da Quaresma. O resultado é de tal ordem que, em junho, o Papa decide indigitá-lo para arcebispo, atribuindo-lhe os cargos de arquivista e bibliotecário da Santa Sé como sucessor do francês Jean-Louis Bruguès. Desse estatuto será promovido a cardeal a 5 de outubro de 2019, missão que prossegue com infatigável entrega. E, agora, passa a ser prefeito para a Cultura e a Educação no novo Dicastério após indigitação do Papa.

Dominador dos mais ínfimos pormenores da Cultura de cada época, conhece e admira a obra de Pasolini, um dos seus mestres, tal como Flannery O'Connor, comove-se com a vida de Wittgenstein, reconhece no tal diálogo com Anabela Mota Ribeiro que "todos somos capazes de coisas abjetas. Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós". E ainda acrescenta: "Somos mesquinhos, banais, egóticos, ressentidos."

São dezenas as obras que já publicou, dignas de admiração generalizada sem que importe o género - entre "Os Dias Contados" e "Rezar de Olhos Abertos" há 30 anos de distância, mas o homem comum a ambos, mesmo que se revele num universo de diferenças, no essencial não se alterou - evoluiu, leu e escreveu muito, aprendeu ensinando e ensinou a aprender. Não faltam distinções à sua escrita, seja ela de cariz poético, ensaístico ou até mesmo as crónicas: Prémio Cidade de Lisboa de Poesia (1998), Prémio Pen Club de Ensaio (2005), o italiano Res Magnae para obras ensaísticas (2015), Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2016), o Grande Prémio APE de Crónica (2016) e o prestigiado Prémio Capri-San Michele (2017). "Murmúrios do Mar", o poema que a jornalista e escritora Alice Vieira aqui nos apresenta, faz parte do livro "Baldios", editado em 1999.

Mas este texto só pode mesmo terminar com outras frases inesquecíveis de Tolentino de Mendonça na entrevista que venho citando: "As nossas mães, as nossas avós, veem tudo o que somos antes de sermos. Veem o que somos mesmo que nunca o digamos."


Assírio & Alvim


"A poesia é a arte de resistir ao seu tempo", defende o agora prefeito do novo Dicastério para a Cultura e a Educação, depois de ter sido responsável pela Biblioteca Apostólica e pelo Arquivo Secreto no Vaticano.

Nascida em Lisboa, a 20 de março de 1943, Alice de Jesus Vieira Vassalo da Fonseca passou muitas férias de verão nas termas de Caldelas e, antes de entrar na Faculdade de Letras, estudou no Liceu D. Filipa de Lencastre. Seria jornalista e mulher de Mário Castrim, crítico de televisão, escrevendo aos 14 anos um texto a tentar que ele o publicasse, mas a resposta foi negativa, embora lhe indicasse o caminho de continuar a tentar. Alice insistiu, trocaram muitas cartas e acabaram por conhecer-se quando a licenciada em Filologia Germânica começou a trabalhar no Diário de Lisboa. Porém, quando a ligação entre os dois ganhou dimensão, Alice atravessou a rua e foi trabalhar para o Diário Popular, conforme contou ao Público em 2012. "As pessoas, quando têm um relacionamento, não devem trabalhar no mesmo sítio. Seja marido e mulher, pai e filho", disse. Em 1966, conforme lembrou em entrevista ao Diário de Notícias publicada a 3 de agosto de 2018, foi para Paris, onde se encontrava Maria Lamas, sua prima e que era também escritora, tradutora, jornalista e militante pela causa feminista, além de grande lutadora contra a ditadura. Na referida entrevista ao Diário de Notícias contou como foi a experiência de viver o Maio de 68 na capital francesa e o tempo que ali passou. "Foi a liberdade completa", lembrou. "Foram anos que me enriqueceram muito: aquilo que se ouve, que se vê, as conversas que se têm", sintetizou. Nesse âmbito, não deixou de lembrar o convívio com personalidades como Pablo Neruda, Jorge Amado e a sua mulher, Zélia Gattai, ou Manuel Alegre.

Na conversa com Rita Pimenta para o diário Público em 2012 reconheceu ainda que fora desaconselhada a ligar-se a Castrim, sobretudo devido à diferença de 23 anos entre eles. Contudo, a vida encarregou-se de mostrar que tivera razão em ignorar os receios de outros. "Quando tive o 'cancro da praxe', ele é que foi o meu enfermeiro", contou. E transmitiu-lhe a força necessária para que pudesse ultrapassar as diversas fases da doença, em especial a da quimioterapia. Além disso, incentivou-a sempre a escrever, admitindo a autora com mais de três décadas a construir uma importante obra para público mais jovem - mas também de poesia, romance e crónicas - que sente "algum remorso por ele se ter afastado da escrita" para que ela se dedicasse aos livros.

Alice e Mário são pais da escritora Catarina Fonseca e do professor universitário André Fonseca e ganharam netos que ele não chegou a conhecer. Para Alice, o jornalismo continuou, depois do Diário Popular no Record e no Diário de Notícias, mas também no Jornal de Notícias e em revistas. Quanto à escrita de livros, essa ganhou decisivo impulso graças ao primeiro prémio que recebeu, em 1979, relativo a literatura infantil, vindo da Fundação Gulbenkian e entregue em função da obra "Rosa, Minha Irmã Rosa". Ambos cultivaram o contacto com as crianças como um privilégio, algo que Alice tem continuado a fazer com a ternura de sempre. Também escreve poesia e tem participação em coletâneas de crónicas ou parcerias em obras de ficção. A sua vasta obra está traduzida para dezenas de línguas e também já foi premiada além-fronteiras. E, sempre interessada em novos projetos, na fase de pandemia Alice Vieira esteve com Manuela Niza em Retratos Contados com as crónicas "Pó de Arroz e Janelinha" que chegaram à Antena 1 e também podiam ser seguidas via Facebook. Um projeto cujo mentor foi, em 2015, precisamente Nélson Mateus, coautor do livro que já aqui se apresentou: "Diário de uma Avó e de um Neto Confinados em Casa", diálogo por entre momentos inesquecíveis, com uma proposta diferente que, em tempos estranhos e adversos de pandemia, juntou Alice Vieira e Nélson Mateus. E um segundo volume está já em preparação... Nélson nasceu em 1972 na cidade de Lisboa e tem procurado desenvolver projetos e iniciativas que valorizem os mais velhos como, por exemplo, o 1.º Encontro Avós e Netos; a celebração dos 60 anos de carreira de Simone de Oliveira ou exposições que passam em revista o trabalho e a vida de nomes tão fundamentais como Ruy de Carvalho ou Alice Vieira.

Aqui no blog, Alice Vieira participou com várias leituras: primeiro, a 1 de maio de 2020, homenageando Mário Castrim ao ler um excerto de "Viagens em Casa"; mais tarde, a 15 desse mesmo mês, com "O Valor do Vento", poema de Ruy Belo; a estreia de "Murmúrios do Vento", de José Tolentino de Mendonça, aconteceu em abril de 2021 e hoje está de regresso.

Mas esta não foi a estreia de um livro da escritora aqui: a 26 de dezembro de 2020, li um trecho da obra "Trisavó de Pistola à Cinta e Outras Histórias". Três dias mais tarde, a 29 desse mesmo mês, foi a vez de um excerto do livro "Se Perguntarem por Mim Digam que Voei". A 26 de fevereiro do ano seguinte apresentei um pouco da obra "Viagem à Roda do Meu Nome". E, a 20 de março, por ocasião do aniversário da jornalista e escritora, o Fernando Soares leu o poema "São Um Perigo as Palavras", parte do livro "O Que Dói às Aves". Desde aí, têm sido diversas as presenças de leituras de obras assinadas por Alice Vieira.

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