No Dia Mundial do Livro aqui ficam duas excelentes propostas apresentadas por Alice Vieira ("Murmúrios do Mar", de José Tolentino de Mendonça) e por Sara Loureiro ("Fahrenheit 451", de Ray Bradbury).
Tem de haver, e há, como todos sabemos, algo de grandioso em alguém que faz afirmações como esta: "A minha avó, que não sabia ler, nem escrever, foi a minha primeira biblioteca." Maria, como todas as mulheres da sua família, dizia-lhe romances medievais de cor. Tolentino de Mendonça disse-o a Anabela Mota Ribeiro, numa entrevista em 2012 que o diário Público divulgou. Hoje, a todos é fácil contemplar com reverência as funções que desempenha. Porém, antes de se tornar o guardião da Biblioteca Apostólica e do Arquivo Secreto do Vaticano, por escolha do Papa Francisco, que o tornou cardeal a 5 de outubro de 2019, José Tolentino Calaça de Mendonça tinha já um percurso muito respeitado em diferentes vertentes. E descobria a grandiosidade que pode existir em cada um de nós ao comover-se com o "Cântico dos Cânticos" que uma auxiliar da igreja, também analfabeta como a sua avó, lhe sabia dizer de forma inigualável, conforme contou nessa entrevista de boa memória.
Nascido no Machico, ilha da Madeira, a 15 de dezembro de 1965, o pequeno José foi o mais novo de cinco irmãos e iria distinguir-se pela vivacidade e inteligência com que sempre olhou o mundo ao seu redor. Angola, para onde viajou com apenas um ano, ao lado da mãe e dos irmãos, seguindo de barco para se juntarem ao progenitor no Lobito, será um dos primeiros cenários de que guarda recordações, pois ali viveu com a família - o pai era pescador - até aos nove anos, altura em que a independência o forçou a um regresso repentino a Portugal.Não esqueceu, contudo, a vastidão de espaços a perder de vista. "A infância é um vazio que nos interpela", dirá, muitos anos mais tarde, diante de Anabela Mota Ribeiro em entrevista. "Quando penso na infância, nem por uma vez me lembro de medo, de ansiedade", contou.
Depressa a religião se torna chamamento a que não resiste e aos 11 anos já está no seminário. Outra marca fundamental é Herberto Helder, com cuja obra toma contacto aos 16 anos. Na conversa com Anabela Mota Ribeiro, Tolentino de Mendonça admite que "foi uma grande descoberta. Foi como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que qualquer adjetivo".
De 1989 são a sua licenciatura em Teologia na Universidade Católica Portuguesa (UCP) e também a primeira visita a Roma. Quando, no ano seguinte, publica "Os Dias Contados", estreia literária e poética, é já padre na diocese do Funchal e prossegue os estudos com a sede de saber que o caracteriza. Torna-se mestre em Ciências Bíblicas, mais tarde doutor em Teologia Bíblica. Sai do Funchal rumo a Lisboa para ser capelão da UCP e, mais tarde, passar pela paróquia de Santa Isabel e com a condição de reitor na Capela de Nossa Senhora da Bonanza - ou, como a conhecem tantos, a Capela do Rato. Sendo ensinar também uma forma de aprendizagem, nos locais por onde passa assumirá ainda a condição de docente com diferentes graus de evidência: no Funchal, em Lisboa, Nova Iorque ou Vaticano, vai de convidado a assistente, auxiliar e associado. Tem frequentes intervenções nos media, é escolhido pela Conferência Episcopal Portuguesa para dialogar com o mundo cultural. Chega a vice-reitor da Universidade Católica e a diretor da Faculdade de Teologia. Bento XVI é o primeiro no Vaticano a reparar na sua inteligência, no modo simples que usa para interpretar o mais complexo e torna-o consultor do Conselho Pontifício na área cultural. Francisco prolonga o seu desempenho. É 2018 e o Papa Francisco torna a escolhê-lo - desta vez, quer que organize os Exercícios Espirituais no retiro da Quaresma. O resultado é de tal ordem que, em junho, o Papa decide indigitá-lo para arcebispo, atribuindo-lhe os cargos de arquivista e bibliotecário da Santa Sé como sucessor do francês Jean-Louis Bruguès. Desse estatuto será promovido a cardeal a 5 de outubro de 2019, missão que prossegue com infatigável entrega.
Dominador dos mais ínfimos pormenores da Cultura de cada época, conhece e admira a obra de Pasolini, um dos seus mestres, tal como Flannery O'Connor, comove-se com a vida de Wittgenstein, reconhece no tal diálogo com Anabela Mota Ribeiro que "todos somos capazes de coisas abjetas. Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós". E ainda acrescenta: "Somos mesquinhos, banais, egóticos, ressentidos."
São dezenas as obras que já publicou, dignas de admiração generalizada sem que importe o género - entre "Os Dias Contados" e "Rezar de Olhos Abertos" há 30 anos de distância, mas o homem comum a ambos, mesmo que se revele num universo de diferenças, no essencial não se alterou - evoluiu, leu e escreveu muito, aprendeu ensinando e ensinou a aprender. Não faltam distinções à sua escrita, seja ela de cariz poético, ensaístico ou até mesmo as crónicas: Prémio Cidade de Lisboa de Poesia (1998), Prémio Pen Club de Ensaio (2005), o italiano Res Magnae para obras ensaísticas (2015), Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2016), o Grande Prémio APE de Crónica (2016) e o prestigiado Prémio Capri-San Michele (2017). "Murmúrios do Mar", o poema que a jornalista e escritora Alice Vieira aqui nos apresenta, faz parte do livro "Baldios", editado em 1999.
Mas este texto só pode mesmo terminar com outras frases inesquecíveis de Tolentino de Mendonça na entrevista que venho citando: "As nossas mães, as nossas avós, veem tudo o que somos antes de sermos. Veem o que somos mesmo que nunca o digamos."
Assírio & Alvim
"A poesia é a arte de resistir ao seu tempo", defende o responsável pela Biblioteca Apostólica e pelo Arquivo Secreto no Vaticano.
Nascida em Lisboa, a 20 de março de 1943, Alice de Jesus Vieira Vassalo da Fonseca passou muitas férias de verão nas termas de Caldelas e, antes de entrar na Faculdade de Letras, estudou no Liceu D. Filipa de Lencastre. Seria jornalista e mulher de Mário Castrim, crítico de televisão, escrevendo aos 14 anos um texto a tentar que ele o publicasse, mas a resposta foi negativa, embora lhe indicasse o caminho de continuar a tentar. Alice insistiu, trocaram muitas cartas e acabaram por conhecer-se quando a licenciada em Filologia Germânica começou a trabalhar no Diário de Lisboa. Porém, quando a ligação entre os dois ganhou dimensão, Alice atravessou a rua e foi trabalhar para o Diário Popular, conforme contou ao Público em 2012. "As pessoas, quando têm um relacionamento, não devem trabalhar no mesmo sítio. Seja marido e mulher, pai e filho", disse. Em 1966, conforme lembrou em entrevista ao Diário de Notícias publicada a 3 de agosto de 2018, foi para Paris, onde se encontrava Maria Lamas, sua prima e que era também escritora, tradutora, jornalista e militante pela causa feminista, além de grande lutadora contra a ditadura. Na referida entrevista ao Diário de Notícias contou como foi a experiência de viver o Maio de 68 na capital francesa e o tempo que ali passou. "Foi a liberdade completa", lembrou. "Foram anos que me enriqueceram muito: aquilo que se ouve, que se vê, as conversas que se têm", sintetizou. Nesse âmbito, não deixou de lembrar o convívio com personalidades como Pablo Neruda, Jorge Amado e a sua mulher, Zélia Gattai, ou Manuel Alegre.
Na conversa com Rita Pimenta para o diário Público em 2012 reconheceu ainda que fora desaconselhada a ligar-se a Castrim, sobretudo devido à diferença de 23 anos entre eles. Contudo, a vida encarregou-se de mostrar que tivera razão em ignorar os receios de outros. "Quando tive o 'cancro da praxe', ele é que foi o meu enfermeiro", contou. E transmitiu-lhe a força necessária para que pudesse ultrapassar as diversas fases da doença, em especial a da quimioterapia. Além disso, incentivou-a sempre a escrever, admitindo a autora com mais de três décadas a construir uma importante obra para público mais jovem - mas também de poesia, romance e crónicas - que sente "algum remorso por ele se ter afastado da escrita" para que ela se dedicasse aos livros.
Alice e Mário são pais da escritora Catarina Fonseca e do professor universitário André Fonseca e ganharam netos que ele não chegou a conhecer. Para Alice, o jornalismo continuou, depois do Diário Popular no Record e no Diário de Notícias, mas também no Jornal de Notícias e em revistas. Quanto à escrita de livros, essa ganhou decisivo impulso graças ao primeiro prémio que recebeu, em 1979, relativo a literatura infantil, vindo da Fundação Gulbenkian e entregue em função da obra "Rosa, Minha Irmã Rosa". Ambos cultivaram o contacto com as crianças como um privilégio, algo que Alice tem continuado a fazer com a ternura de sempre. Também escreve poesia e tem participação em coletâneas de crónicas ou parcerias em obras de ficção. A sua vasta obra está traduzida para dezenas de línguas e também já foi premiada além-fronteiras. E, sempre interessada em novos projetos, nesta fase de pandemia Alice Vieira está com Manuela Niza em Retratos Contados com as crónicas "Pó de Arroz e Janelinha" que já chegaram à Antena 1 e também podem ser seguidas via Facebook.
Aqui no blog, Alice Vieira participou com duas leituras: primeiro, a 1 de maio, homenageando Mário Castrim ao ler um excerto de "Viagens em Casa"; mais tarde, a 15 desse mesmo mês, com "O Valor do Vento", poema de Ruy Belo.
Mas esta não foi a estreia de um livro da escritora aqui: a 26 de dezembro, li um trecho da obra "Trisavó de Pistola à Cinta e Outras Histórias". Três dias mais tarde, a 29 desse mesmo mês, foi a vez de um excerto do livro "Se Perguntarem por Mim Digam que Voei". A 26 de fevereiro apresentei um pouco da obra "Viagem à Roda do Meu Nome". E, a 20 de março, por ocasião do aniversário da jornalista e escritora, o Fernando Soares leu o poema "São Um Perigo as Palavras", parte do livro "O Que Dói às Aves".
Clássico da literatura distópica, "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury vem mesmo a calhar, tendo em conta os tempos estranhos que vivemos. E Sara Loureiro bem o sabe ao fazer esta escolha para o Dia Mundial do Livro.
Há autores que, por muitos livros que escrevam, terão sempre uma espécie de cartão de visita que os torna seguidos um pouco por todo o mundo. Com Ray Bradbury é isso que acontece por causa de "Fahrenheit 451", uma das mais famosas distopias da literatura moderna, publicado em 1953 e com adaptações ao cinema em 1966 por François Truffaut e em 2018 por Ramin Bahrani. Uma história terrível, na qual se queimam livros (o título remete precisamente para a temperatura a que o papel arde) e em que o conhecimento é considerado algo subversivo, trocando-se a leitura por uma sociedade em que a maior parte dos cidadãos abdica da curiosidade, da liberdade e do saber para ter apenas consumo, entretenimento, ausência de preocupações e, supostamente, de conflitos. Neste livro, os bombeiros são chamados não para apagar incêndios, mas para queimar os perigosos instrumentos de desestabilização (os livros). Mas a sua obra, composta por mais de três dezenas de livros, é muito mais do que este livro e atribui à ficção científica um lugar de relevo que poucos escritores lhe garantiram.
Ray Leonard Bradbury nasce na localidade de Waukegan, no Estado do Illinois, a 22 de agosto de 1920. Um irmão e uma irmã morreram ainda crianças naquele período negro que foi a Grande Depressão. Na infância, atribulada por tempos que a família teve de passar fora do seu meio natural, passou muito tempo deliciado com as leituras que uma tia lhe proporcionava e esse fascínio permaneceu pelo tempo fora. Durante algum tempo, a família vive em Tucson, no Arizona, instalando-se a meio dos anos 30 em Los Angeles para fascínio de Bradbury face à proximidade do mundo maravilhoso de Hollywood. Escreve os primeiros textos ainda criança e vai alimentando o prazer pela leitura com as obras de autores como Edgar Rice Burroughs, Edgar Allan Poe, Júlio Verne, H.G. Wells, entre outros, numa evidente atração pela ficção científica que, mais tarde, irá escrever. À medida que entrou na adolescência, Bradbury ganhou como passatempo estar próximo dos estúdios de cinema e de entradas de teatros, assim se aproximando o suficiente de algumas estrelas para conseguir autógrafos. Lê revistas de ficção científica e publica o primeiro texto no fanzine Imagination! em 1938. No começo dos anos 40, acaba por conseguir um lugar numa revista de cinema, escreve peças de teatro e os primeiros contos. "Fireman", que começou por ser um desses contos, evoluiu depois para se transformar no famoso "Farhenreit 451".
De 1945 é a escolha do seu conto "The Big Black and White Game" como o melhor do país nesse ano e isso suscita atenções sobre o seu trabalho. Em 1947, Marguerite McClure tornou-se mulher de Bradbury e seriam pais de quatro filhas: Susan, Ramona, Bettina e Alexandra. Apenas Bettina seguiu, em parte, os passos do pai, uma vez que escolheu a profissão de argumentista.
Mas será a década de 50 a determinar o seu sucesso como escritor. Publica "The Martian Chronicles" em 1950 e, no ano seguinte, "The Illustrated Man". Depois de "Farhenreit 451", passa a escrever também argumentos para cinema com destaque para a adaptação de "Moby Dick" (1956) que teve realização de John Huston. Participa também em séries de televisão como "The Twilight Zone" ou programas como o seu "Ray Bradbury Theater". E, claro, vai escrevendo e publicando, de tal forma que acabará por ser autor de mais de seis centenas de contos.
"A ficção científica é uma boa maneira de fingirmos que estamos a falar sobre o futuro quando, de facto, daquilo que se trata é do passado recente e mesmo do presente", reconhece. Ao longo dos anos, Ray Bradbury continua a alimentar a paixão pela escrita, pelo menos até 1988. Até que, em 1999, sofreu um AVC, ficou paralisado de uma parte do corpo e teve de recorrer a uma cadeira de rodas para se movimentar. Mas, se alguém esperava que isso o impedisse de exercer o ofício da escrita, depressa o autor mostrou o contrário, de tal forma que não se coibiu de publicar um ensaio na revista The New Yorker. Morreria aos 91 anos, em Los Angeles, a 6 de junho de 2012.
Podem saber mais sobre o autor aqui na sua página oficial na Internet.
Publicações Europa-América/Tradução de Mário Henrique Leiria e Teresa da Costa Pinto Pereira
Nem só como Ray Bradbury o autor assinou livros, teve uma coleção de pseudónimos: Doug Rogers, Ron Reynolds, Guy Amory, Omega, Anthony Corvais, E. Cunningham, Brian Eldred, Cecil Cunningham, D. Lerium Tremaine, Edward Banks, D.R.Banet, Willian Elliot, Brett Sterling, Leonard Spaulding, Leonard Douglas ou Douglas Spaulding são apenas alguns.
Sara Loureiro é licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, pós-graduada em Animação Cultural e Mestre em Ciências da Educação. Atualmente dedica-se, como freelancer, à promoção do livro, da leitura e da escrita criativa. É diseuse e não concebe a sua vida sem ler e escrever poesia, o seu superalimento. Também faz resenhas de livros, publicando e partilhando opiniões sobre o que lê. Considera que as palavras são uma das maiores invenções da Humanidade e, por isso, gosta de as ter por perto, de lhes sentir o pulso e insuflar vida. A sua atividade estende-se, igualmente, às áreas da programação e da produção cultural. É cofundadora do PICA, Projeto de Intervenção Cultura e Artes, nascido da/para a sociedade civil, com o propósito de valorizar, preservar e divulgar o património cultural, material e imaterial. Além disso, é consultora pedagógica e formadora na PLUS Academy.
Esta é a mais uma das participações de Sara Loureiro aqui no blog, mas nunca é apenas mais uma, porque cada uma das suas presenças deixa marcas bem vincadas - a estreia registou-se a 3 de junho com um trecho do romance "A Vida de um Homem que Perseguia Poemas", de Joana M. Lopes. A 11 de outubro apresentou "Ponte Pequim sobre o Tejo", de António Oliveira e Castro. A 1 de fevereiro marcou presença no Especial dedicado ao Dia Mundial da Leitura em Voz Alta com um trecho do livro "O Infinito num Junco", de Irene Vallejo.
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