Prémio Camões em 1999, Sophia de Mello Breyner já teve três presenças aqui no blog e regressa agora pela voz de Fernanda Silva com a leitura de um excerto do livro "O Cavaleiro da Dinamarca".
A principal componente da obra de Sophia é a poesia, mas a escritora não se ficou por este género e também publicou livros com histórias para crianças que, de início, contara aos filhos, depois as transformando para textos escritos. Sophia de Mello Breyner Andresen contou por diversas vezes em entrevistas como entrara no universo da literatura infantil. Tudo se iniciara quando os filhos estavam doentes com sarampo e era preciso que "estivessem quietos". Contava-lhes histórias, mas depressa se irritou ao perceber que a linguagem utilizada não era aquela que considerava mais adequada. Olhava-a como demasiado "sentimental", no fundo, algo que lidava com as crianças como se estas não fossem capazes de entender a beleza de tudo o que é simples e respeitador da inteligência. Assim, passou a recorrer a histórias relacionadas com os seus próprios tempos e lugares de menina, algumas delas em parte contadas pela sua mãe. A primeira foi "A Menina do Mar".
"A Menina do Mar" teve publicação logo em 1958, contando a história de um rapaz e de uma rapariga e da relação de amizade que entre eles se estabelece. O livro deu origem a uma peça musical do maestro Fernando Lopes-Graça em 1961, com a voz da atriz Eunice Muñoz na leitura da história, mas também a uma de Bernardo Sassetti com Beatriz Batarda e outra de Filipe Raposo num registo de jazz a partir do trabalho de Sassetti, além de também ter sido adaptado ao teatro num musical de Filipe La Féria. No ano passado, enquanto parte das celebrações do centenário do nascimento da escritora, "A Menina do Mar" esteve no Teatro Luís de Camões com uma adaptação musical em que a orquestra foi dirigida por Martim Sousa Tavares, maestro e neto de Sophia.O impulso inicial foi crescendo na mesma medida em que os filhos a estimularam a criar mais e mais com a sua curiosidade insaciável. Sophia contava aos filhos e depois procurava passá-las para o papel, respeitando com fidelidade aquilo que dissera em voz alta. E chegou a um ponto em que algumas das histórias tiveram tanto de contadas quanto de escritas.
"O Cavaleiro da Dinamarca", de que aqui se apresenta a leitura de um trecho, foi lançado em 1964 e teria reedições em 2014 e 2017. Conta a história de um cavaleiro que vive com a família em solo dinamarquês, viaja rumo à Terra Santa e regressa. Nesses percursos registam-se inúmeras peripécias e o final é para guardar sempre na memória.
No caso d'"O Rapaz de Bronze", o livro está recheado de momentos maravilhosos que acontecem num jardim de sonho. Foi editado pela primeira vez em 1966 com ilustrações de Fernando de Azevedo (as edições seguintes teriam ilustração de Júlio Resende) e está repartido em quatro capítulos: As Flores, O Gladíolo, Florinda e A Festa. Antes deste já estavam editadas outras histórias suas para crianças: a já referida "A Menina do Mar" e "A Fada Oriana" (ambos de 1958), "A Noite de Natal" (1964) e o mencionado "O Cavaleiro da Dinamarca" (1964). Mais tarde vieram "A Floresta" (1968), "O Tesouro" (1970) e "A Árvore" (1985).
Passada no Porto, entre a famosa casa do Campo Alegre e o jardim, mas também com frequentes idas à praia da Granja, a infância de Sophia de Mello Breyner Andresen (nasceu a 6 de novembro de 1919) teve marcas de enorme felicidade numa família bem instalada no plano social. Os lugares, ambientes e sentimentos foram de tal forma intensos que não deixariam de estar bem presentes na sua escrita desde os primeiros poemas, escritos no final da adolescência. Em Lisboa, de 1936 a 1939 passou pelo curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras, assim nascendo a profunda admiração pela Antiguidade Clássica, em particular pelo universo do helenismo que haveria de cultivar nas várias visitas à Grécia. Fascinada pela escrita, a sua entrada nos meios intelectuais processou-se no dealbar dos anos 40 através da colaboração na Revista de Poesia, ao lado de personalidades da Cultura de quem seria amiga como Ruy Cinatti ou Jorge de Sena. Em 1944 edita "Poesia", o trabalho de estreia em livro. Dois anos mais tarde casa-se com Francisco de Sousa Tavares, advogado, jornalista e político ao lado de quem terá cinco filhos, ganhando a sua obra literária uma outra dimensão, mais centrada em questões de índole social e de contestação ao regime de Salazar. Aliás, esse reconhecimento ficará expresso na dedicatória dos "Contos Exemplares", em 1962, feita ao marido: "Para o Francisco, que me ensinou a coragem e a alegria do combate desigual". E, no exemplar que lhe ofereceu, deixou uma diferente, mais pormenorizada nos desafios enfrentados pelo casal face à repressão e vigilância da PIDE e da censura: "Para o Francisco, com a memória dos inumeráveis combates que travamos juntos todos os dias contra a estupidez, a mentira e a mediocridade. Com a minha confiança em todas as coisas verdadeiras e claras, em todas as matérias de Esperança". Ele chamava-lhe "Xixa", ela tratava-o por "Tareco". Décadas depois, chegariam tempos muito diferentes desses na sua relação, uma vez que, na segunda metade dos anos 80, divorciaram-se e Francisco Sousa Tavares iria casar-se com Amélia Brugnini em 1989.
Mas logo na década de 50, Sophia já revelava antagonismo face ao Estado Novo, sobretudo quando João Andresen, arquiteto e seu irmão, ganhou um concurso sobre um monumento ao Infante D. Henrique a que chamou "Mar Novo", mas o ditador rejeitou o resultado desse concurso. Sophia publicou então (1958) um livro de poesia com o nome do projeto do irmão, deixando bem vincado o seu asco pela opressão - o poema "Este é o Tempo" é elucidativo: "Este é o tempo/Da selva mais obscura/Até o ar azul se tornou grades/E a luz do sol se tornou impura/Esta é a noite/Densa de chacais/Pesada de amargura/Este é o tempo em que os homens renunciam" - e a sua revolta. Aliás, em entrevista que data de 1982 e foi recordada pela Rádio Renascença no ano passado, a propósito do centenário da escritora, Sophia referia-se até às primeiras recordações do que considerava revolta. "Na minha infância havia uma certa miséria não escondida que depois desapareceu. Foi arrumada não se sabe para onde pelo Estado Novo. Essa grande miséria muito patente era uma interrogação enorme, um escândalo no meio do mundo e da infância. Em determinada altura, e por influência de pessoas com quem convivi, esse escândalo foi-se estruturando e tomando forma mais definida. O que era só uma indignação ou um espanto ou uma angústia foi-se transformando numa escolha política. A partir de certo momento pensei ser necessária uma luta pela justiça que passava pela política. O que está na base da minha opção política é o não aceitar o escândalo. É o não aceitar que haja pessoas inteiramente sacrificadas. O considerar que não é possível passar por cima do cadáver dos outros ou por cima de vidas diminuídas e desumanizadas", afirmou.
Continuava a escrever, não só poesia, mas também contos que, ao longo dos anos, ia criando para os filhos e se tornariam histórias para todas as gerações de crianças: "A Menina do Mar", "A Fada Oriana", "A Noite de Natal", "O Cavaleiro da Dinamarca", "O Rapaz de Bronze", "A Floresta" ou "A Árvore" são exemplos.
Mas o cerco da ditadura não parava à volta do casal. Apoiantes da candidatura de Humberto Delgado à Presidência, sofreriam represálias, traduzidas no despedimento de Francisco do seu trabalho como subinspetor do trabalho. Quando Sophia escreve "Livro Sexto", em 1962, o poema "O Velho Abutre" é o retrato perfeito do ditador: "O velho abutre é sábio e alisa as suas penas/A podridão lhe agrada e seus discursos/Têm o dom de tornar as almas mais pequenas". A PIDE está sempre atenta às movimentações em casa de Sophia e Francisco, regista os nomes de visitantes que se opõem ao regime, tira fotografias, escuta-lhes o telefone, segue-os sem tréguas. Numa outra entrevista, esta de 1989, também citada pela Rádio Renascença, Sophia recorda várias situações. "Antes do 25 de Abril tive muitos problemas, sim. Não me censuraram os livros, mas censuraram-me entrevistas, por exemplo. E censuraram-me poemas nos jornais. Sim, cortaram-me poemas inteiros. Às vezes eu nem percebia muito bem porquê. Revistavam a casa. Censuravam-me as cartas dos amigos. E tive vários amigos presos", descreve. Mesmo sem ser considerada subversiva pela polícia política, ainda foi convocada para ir à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, mas desarmou os facínoras, ripostando com inteligência e elegância ao interrogatório (já o marido seria preso em 1966 e em 1968, depois de o casal ter sido proibido de sair do país). A escritora integra movimentos católicos contra o regime, assina a Carta dos 101 Católicos a contestar a guerra colonial, Salazar e os incentivos da Igreja ao seu regime, empenha-se no apoio aos presos políticos e ajuda a criar a Comissão Nacional que lhes servirá o auxílio possível.
Quando Mário Soares, amigo e grande referência no plano político, volta de São Tomé já com Marcelo Caetano no poder, depois de ter sido preso pela PIDE e deportado por ordem de Salazar, convida o casal para a integração nas listas da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD). A escritora seria candidata pelo círculo do Porto em 1969. Reivindica eleições livres, algo que só acontecerá depois do 25 de Abril, sobre o qual é avisada pelo telefonema de um amigo a meio da madrugada. Dois dias depois escreve o poema dedicado à Revolução, sendo esta um dos momentos mais alegres da sua vida e aqueles dias vividos "em estado de máxima levitação" como confessou a Eduardo Prado Coelho (em 1997 citaria Rimbaud, acentuando mesmo que, além do sentido político, "a Revolução teve também um sentido poético"). "A poesia está na rua" é uma frase de um poema seu que constituiu inspiração para a pintora Vieira da Silva.
De Soares voltou a partir um convite político e, pelo Partido Socialista, Sophia de Mello Breyner estaria na Assembleia Constituinte, tal como o marido, deixando marcas indeléveis da sua lucidez e firmeza como, por exemplo, na intervenção de 1 de agosto de 1975 em que critica aquilo que considerou o desvirtuamento da Revolução "pelo abuso e pela avidez de poder das falsas vanguardas ideológicas". Ou ainda na de 2 de setembro, dedicada à Cultura, como lembrou Manuel Alegre à Rádio Renascença. "Sabemos que toda a cultura real trabalha para a libertação do homem e que, por isso, toda a cultura real é, na sua raiz, revolucionária. Sabemos que não podemos construir, de facto, o socialismo se não ultrapassarmos o uso burguês da cultura. A cultura não é um luxo de privilegiados. Se o homem é capaz de criar a revolução, é exatamente porque é capaz de criar a cultura", disse. Abandonou o Parlamento após a Constituinte e, anos depois, confessou que fora uma experiência penosa, porque "estar ali sentada a ouvir falar, falar, falar, era uma agonia". O desencanto pesou demasiado e os convites seguintes para cargos públicos foram recusados - seria apenas chanceler das Ordens Honoríficas durante três anos, outra vez a solicitação de Soares -, embora não deixasse de estar ao lado de Mário Soares e de Jorge Sampaio nas Presidenciais, além de defender a independência de Timor-Leste.
Prémio Camões em 1999, dois acidentes vasculares cerebrais deixam-na muito debilitada a partir do ano seguinte. Morre a 2 de julho de 2004 em Lisboa. A sua admirada obra é extensa, percorre os territórios de poesia, prosa, contos para crianças, ensaios e teatro, sendo ainda muito elogiadas as suas traduções.
A obra de Sophia de Mello Breyner já foi abordada aqui no blog por três vozes diferentes: eu li o seu poema intitulado "25 de Abril", precisamente no especial dedicado ao Dia da Liberdade; depois, a jornalista Berta Rodrigues, a 4 de maio, com a leitura de um excerto do livro "O Rapaz de Bronze"; depois, a 29 de junho, a também jornalista Carla Martins Costa apresentou um trecho do livro "A Menina do Mar".
Porto Editora
A partir do final dos anos 50, Sophia de Mello Breyner começou a escrever histórias infantis por causa dos filhos.
Fernanda Silva tem participação regular aqui no blog. Tudo começou com "O Universo num Grão de Areia", de Mia Couto, a 28 de abril, seguindo-se "A Vida Sonhada das Boas Esposas", de Possidónio Cachapa (11 de maio), "Uma Mentira Mil Vezes Repetida", de Manuel Jorge Marmelo (8 de junho), "Bom Dia, Camaradas", de Ondjaki (27 de junho), "Quem me Dera Ser Onda", de Manuel Rui (5 de julho), e "O Sol e o Menino dos Pés Frios" (16 de julho), de Matilde Rosa Araújo. No passado dia 8 de outubro voltou com "O Tecido de Outono", de António Alçada Baptista e, a 27, leu "Histórias que me Contaste Tu", de Manuel António Pina, seguindo-se "Imagias", de Ana Luísa Amaral, a 12 de novembro, e "Os Memoráveis", de Lídia Jorge, apresentado no passado dia 16. A 23 de novembro, Fernanda Silva leu um trecho do livro "Do Grande e do Pequeno Amor", de Inês Pedrosa e Jorge Colombo.
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