Aqui se recupera uma das escolhas feitas por Sandra Escudeiro: o poema "A Espantosa Realidade das Coisas", assinado por Alberto Caeiro, um dos heterónimos de Fernando Pessoa. Neste caso foi utilizado o livro "Poemas de Fernando Pessoa", coletânea com 164 poemas, seleção, prefácio e posfácio de Eduardo Lourenço e que se publicou em 2005 para assinalar os 70 anos sobre a morte do poeta.
Um dos heterónimos criados por Fernando Pessoa, segundo o próprio escreveu em "Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação", Alberto Caeiro nasceu na cidade de Lisboa "em abril de 1889" e, depois de passar quase toda a vida numa quinta do Ribatejo, "nessa cidade faleceu, tuberculoso, em 1915". E acrescenta Pessoa: "Ali foram escritos quase todos os seus poemas, os do livro intitulado 'O Guardador de Rebanhos', os do livro, ou o quer que fosse, incompleto, chamado 'O Pastor Amoroso', e alguns, os primeiros, que eu mesmo, herdando-os para publicar, com todos os outros, reuni sob a designação, que Álvaro de Campos me sugeriu bem, de 'Poemas Inconjuntos'. Os últimos poemas, a partir daquele numerado, são porém produto do último período da vida do autor, de novo passado em Lisboa." O poeta esclarece ainda: "Julgo de meu dever estabelecer esta breve distinção, pois alguns desses últimos poemas revelam, pela perturbação da doença, uma novidade um pouco estranha ao caráter geral da obra, assim em natureza como em direção."
"Ignorante da vida e quase ignorante das letras, sem convívio nem cultura", Alberto Caeiro apresenta uma obra que, no dizer de Pessoa, "representa a reconstrução integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer".
A 13 de janeiro de 1935, numa carta dirigida ao amigo, escritor, tradutor e crítico literário Adolfo Casais Monteiro, Pessoa foi mais longe, encontrando argumentos para a existência dos seus diferentes heterónimos. "Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram", indicou, revelando que Chevalier de Pas fora um dos primeiros. "A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico", referiu. "Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade", contou. No texto desfilaram outros heterónimos criados, como Álvaro de Campos e Ricardo Reis, com as respetivas biografias em síntese, e, sobre a criação específica de Alberto Caeiro, na missiva o próprio Pessoa explicou tratar-se de uma partida que quis pregar ao amigo Mário de Sá-Carneiro (e aponta mesmo um resumo físico e até o facto de que "escrevia mal o português"). "Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro", lembrou.
Na origem de tudo isto está um dos principais nomes da poesia lusófona e figura central do movimento modernista, Fernando António Nogueira Pessoa, nascido no quarto andar do número 4 do Largo de São Carlos, o edifício em frente ao Teatro Nacional de São Carlos, a 13 de junho de 1888, em Lisboa. A infância foi atribulada, pois, com apenas cinco anos, Pessoa perdeu o pai, Joaquim de Seabra Pessoa, vítima de tuberculose, e também o irmão Jorge, no ano seguinte. Com dificuldades financeiras, a mãe, Maria Madalena, mudou-se para o número 104 da rua de São Marçal e iria casar-se com João Miguel Rosa a 30 de dezembro de 1895. Viveu durante nove anos na cidade sul-africana de Durban, pois ali o seu padrasto desempenhava a missão de cônsul. Tornou-se fluente também em inglês, foi um estudante notável numa escola católica irlandesa, criou o pseudónimo Alexander Search, começou a escrever poesia em inglês e perdeu uma irmã, Madalena Henriqueta, que morreu com dois anos. Volta a Lisboa com a família para férias e aqui nasce João Maria, quarto filho do segundo casamento da mãe. Visitam os Açores e Tavira para contactar com familiares, mas o jovem Fernando, sentindo que a mãe lhe dedica menos atenção, começa a ficar distanciado do resto da família. De tal forma que fica em Lisboa algum tempo mesmo depois de os outros familiares voltarem para Durban. Quando regressa, estuda durante o dia na área de Letras com o objetivo de se tornar universitário, mas à noite está na Durban Commercial School. Com o nome de David Merrick faz tentativas de escrita de contos e, em 1903, falha a entrada na Universidade do Cabo, embora seja agraciado com o prémio Rainha Vitória porque o seu ensaio em inglês obtém a melhor classificação entre mais de oito centenas de candidatos. Passa outro ano na escola em solo sul-africano e aprofunda conhecimentos de Literatura antes de viajar sozinho para Lisboa onde irá viver com uma avó e duas tias.
Aos 17 anos, tenta o curso superior de Letras, mas deixa-o ao fim de um ano sem sucesso. Passa para uma aprendizagem por conta própria, "devorando" na Biblioteca Nacional livros sobre disciplinas que o fascinavam: Filosofia, Literatura, Sociologia e Religião. Não tardou a aventurar-se no universo da escrita - primeiro, pelo lado da crítica (1912); depois, pela via da prosa criativa (uma parcela do "Livro do Desassossego", publicada no ano seguinte); e logo com a publicação de poemas (1914). A vida pessoal tinha contornos de saltimbanco, uma vez que tanto precisava de viver com familiares como de se isolar em quartos alugados. No capítulo profissional, não era dos livros que extraía rendimento - em vida publicou apenas "Mensagem" e três obras em inglês -, mas sim do trabalho como tradutor e a escrever cartas comerciais em inglês ou francês.
Vai participar em tertúlias literárias no café A Brasileira (mas também no Martinho da Arcada) com amigos como Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro ou António Botto, transformando-se em elemento preponderante do Modernismo que, em 1915, participa na revista Orpheu (dirige mesmo o segundo e último número em parceria com Mário de Sá-Carneiro) e, em 1924, ajuda a lançar a Athena - aqui publica poesia em seu nome, mas também nos dos heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Pelo meio conhece Ofélia Queirós que ficará na biografia do poeta como a única namorada da sua vida. Conhecem-se em maio de 1920, quando a então jovem de 19 anos entra no escritório onde trabalha Pessoa para ser datilógrafa, mas a morte do padrasto, o regresso a Lisboa da mãe do poeta e a questão de Ofélia passar a viver mais longe representam demasiado peso, pelo que a relação parece acabada em novembro de 1920. A mãe morre em 1925 e Pessoa passa a viver na rua Coelho da Rocha, aqui produzindo milhares de páginas de obra dispersa e variada: poesia, textos filosóficos e políticos (chega a escrever contestação e críticas a Salazar e à ditadura), teatro, contos (alguns deles policiais), crítica literária, traduções e até horóscopos. Sim, porque na referida carta de 1935 a Adolfo Casais Monteiro, o poeta escreve sobre o seu gosto por astrologia e pelo ocultismo: "Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo."
Escreve sempre muito, muitas vezes no café Martinho da Arcada, e em diferentes superfícies, sejam cadernos ou anúncios, na parte de trás de cartas, em panfletos, papel com o selo das firmas para as quais trabalha ou simples folhas soltas. Charles Robert Anon e Jean Seul serão outros dos nomes que integram a extensa lista de heterónimos. Em 1929, retoma o relacionamento e as cartas trocadas com Ofélia, mas é um amor platónico. As bebidas alcoólicas tornam-se uma companhia constante na vida de Pessoa, algo que acabará por apressar-lhe o fim. Internado no hospital de São Luís dos Franceses a 29 de novembro de 1935, o poeta morre no dia seguinte, aos 47 anos.
Fernando Pessoa e outro dos seus heterónimos, Bernardo Soares, já marcaram presença aqui no blog, por exemplo, a 9 de abril de 2020 com "Livro do Desassossego".
Visão/JL
O poema aqui apresentado foi publicado pela primeira vez em 1925.
Sandra Escudeiro, que se identifica como "uma amante da Leitura", mas também artesã, tem presença regular aqui no blog, nasceu em 1973 e vive em Vila Nova de Famalicão. É a dinamizadora do "Clube de Leitores", na biblioteca escolar da Escola Básica de Ribeirão, onde trabalha há 11 anos. Por outro lado, é também artesã e, em part time, dedica-se à trapologia desde 2009. Inspira-se na literatura e nos seus autores, idealiza e constrói bonecos exclusivos em trapos designados "Bonecos Urbanos", aqui surgindo as "Figuras Literárias", isto é, bonecos que caracterizam os mais importantes escritores, diversas personagens das histórias infantis bem como outros seres idealizados na imaginação da criadora. Podem acompanhar aqui o seu maravilhoso trabalho: bonecosurbanos.blogspot.com. Está já nas dezenas a sua participação aqui no blog. Tudo começou com a leitura do poema "A Espantosa Realidade das Coisas", de Alberto Caeiro, heterónimo de Fernando Pessoa, a 15 de junho; seguiram-se "O Limpa-Palavras", de Álvaro Magalhães, a 26 desse mês; "Canção na Massa do Sangue", de Jacques Prévert, a 30 de julho; "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector, a 2 de outubro; "Só" e "O Poço é o Pêndulo", de Edgar Allan Poe, foram as suas leituras de 2 de novembro; no dia 21 desse mês regressou com "Os Transparentes", de Ondjaki.E aproveitou o centenário da escritora Clarice Lispector para regressar, participando nessa edição especial com Inês Henriques e recorrendo à leitura de dois fragmentos da obra da brasileira, no dia 10 de dezembro. A 23 desse mês voltou, então para apresentar um excerto do livro "O Pintor Debaixo do Lava-Louças", de Afonso Cruz. Seguiu-se a presença de 24 de janeiro quando apresentou o poema "Quarto Crescente", do livro "Luto Lento", escrito por João Negreiros. A 10 de fevereiro leu "Devia Morrer-se de Outra Maneira", escrito por José Gomes Ferreira. Cerca de um mês mais tarde foi uma das vozes que contribuíram para o Especial dedicado ao Dia Internacional da Mulher, lendo um excerto de "Insubmissão", de Maria Teresa Horta.
A 26 de março trouxe um trecho da obra "A Desumanização", de Valter Hugo Mãe. "A Infinita Fiadeira", de Mia Couto, foi a sua proposta de 6 de maio. A 30 desse mês trouxe "A Cor Azul", de Jaime Soares. A 26 de junho apresentou "Já Não me Deito em Pose de Morrer", de Cláudia R. Sampaio. "Terra do Pecado", de José Saramago, foi a proposta que leu a 16 de novembro, dia em que o escritor completaria 99 anos. "O Perfume", de Patrick Süskind, foi a sua leitura a 2 de fevereiro. A 26 de abril trouxe "O Vício dos Livros", de Afonso Cruz. "Infância e Palavra", de Luísa Dacosta, foi a sua proposta de 20 de maio. A 2 de junho voltou "O Limpa-Palavras", de Álvaro Magalhães. "Infância e Palavra", de Luísa Dacosta, regressou a 21. Mia Couto e "A Infinita Fiadeira" foram relembrados a 21 de outubro. De 23 de novembro é "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. "Os Transparentes", de Ondjaki, voltou a 6 de janeiro. A 22 de março regressou "O Limpa-Palavras", de Álvaro Magalhães. A 19 de abril voltou "Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector. De 20 de maio é a leitura da obra "A Infinita Fiadeira", de Mia Couto.
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